Poor Things | Desvendando a tendência audiovisual da Noiva Bebê 'Nascida Sexy Ontem' e a subversão da sua problemática

O aguardado filme "Poor Things" (Pobres Criaturas) de Yorgos Lanthimos com estreia no Brasil prevista para 1 de fevereiro, traz à memória um ensaio que cunhou o termo "Born Sexy Yesterday" (Nascida Sexy Ontem), popularizado pelo Pop Culture Detective, em 2017.

Esse termo se refere a um tipo específico de filme em que os personagens, geralmente femininos, possuem maturidade física, mas exibem inocência infantil e falta de compreensão social, mesmo sendo altamente habilidosos. Essa tendência abrange desde a personagem Leeloo de Milla Jovovich em "O Quinto Elemento", dirigido por Luc Besson, até o icônico personagem masculino Tarzan, interpretado por diversos atores em produções live-action e animação. Com o lançamento de "Poor Things", volta a ser oportuno refletir sobre essa temática e sua problemática na indústria cinematográfica.

O conceito de personagens adultos infantilizados tem raízes profundas no gênero de ficção científica. Geralmente, retrata a personagem feminina como um objeto para fantasias masculinas, combinando habilidades físicas com uma ingenuidade sexual óbvia. Sua origem pode ser traçada até o filme "Tron", onde o Pop Culture Detective destaca em seu ensaio a personagem interpretada por Olivia Wilde. Ao longo do tempo, o conceito de "Born Sexy Yesterday" se estabeleceu como um padrão nas narrativas de ficção científica, frequentemente apresentando personagens femininas que são novatas no mundo, têm uma admiração infantil e se envolvem em comportamentos sexualmente explícitos sem compreender plenamente suas implicações.







Um dos aspectos centrais no "Born Sexy Yesterday" é a dinâmica de relacionamento entre a personagem feminina e o protagonista masculino ou personagens que a cercam. Os personagens masculinos assumem o papel de mentores, orientando a personagem feminina inexperiente pelas complexidades do mundo. Essa dinâmica perpetua a ideia de que o personagem masculino é a autoridade máxima, detentor das chaves do conhecimento e da experiência. Além de reforçar a problemática de que eles são superiores, dignos de sua obediência.

A natureza perturbadora, no entanto, reside em sua combinação de sexualização explícita e profunda ingenuidade. A personagem feminina, embora fisicamente madura, é retratada como sexualmente inexperiente e ingenuamente alheia ao impacto de suas ações. Essa mistura paradoxal reforça estereótipos tradicionais de gênero, apresentando o personagem masculino como o professor e a personagem feminina como um recipiente para os seus desejos.

O "Born Sexy Yesterday" frequentemente incorpora habilidades especiais que atendem às fantasias masculinas, como habilidades sobre-humanas ou destreza sexual excepcional. Isso reforça ainda mais a narrativa de que o personagem masculino não é apenas o mentor, mas também o provedor de todas as características desejáveis. A personagem feminina torna-se uma tela na qual são projetados os seus desejos, perpetuando uma dinâmica distorcida de poder; esse "trope" é muitas vezes problemático e exige escrutínio dentro principalmente do gênero de ficção científica. As suas raízes no cinema, evolução ao longo do tempo e a perpetuação de estereótipos de gênero fazem dele um tópico de importância crítica. 







"Poor Things" (Imagem: Divulgação)

Ao reconhecer e participar de conversas sobre esse tema, podemos buscar narrativas que desafiem dinâmicas de poder tradicionais e contribuam para uma representação mais inclusiva e matizada de personagens na ficção científica. No provocativo "Poor Things", Ramy Youssef vive um personagem que vê uma Emma Stone, vestida com o equivalente a uma fralda, mal pronunciando uma palavra, e diz: "Ela é deslumbrante!" – Uma descrição geralmente reservada para supermodelos e estrelas, aplicada a uma mulher infantilizada que ainda não saiu dos sapatos de bebê. Essa dissonância chocante forma a base do que é talvez a piada mais audaciosa, e perturbadoramente hilariante, de Poor Things.

A reação imediata é de pânico. Este desejo flagrante está sendo apresentado de forma direta? Devemos simpatizar com a fascinação desse homem adulto por uma criança literal? Felizmente, não. A subversão nesse filme, embora não seja imediata, é magistralmente elaborada. A criança interna prontamente dá um soco cômico que nos lembra, com brutal precisão da realidade, da criação dos filhos – muito longe das fantasias retocadas frequentemente vendidas por Hollywood. Essa é precisamente a corda bamba que o filme caminha: dedos dos pés curvados até a beira da ofensa, mas nunca caindo.

O seu humor deriva da pura absurdidade da situação, da incongruência de clichês românticos adultos aplicados ao mundo bagunçado e sem sentido das crianças pequenas. As declarações de amor e casamento sugeridos pelo personagem de Willem Dafoe a Youssef, são entregues com um empenho sério que fica entre a vergonha alheia e a hilaridade de cair o queixo. Mas sob o absurdo, existe um comentário afiado sobre as expectativas sociais e as percepções distorcidas de beleza e desejo. A seguir, o filme nos força a confrontar nosso próprio desconforto.






A subversão, no entanto, não é apenas uma piada. É um incêndio lento, uma realização que desponta que o filme, na verdade, está ridicularizando essas mesmas noções. As interações de Dafoe com a jovem de 28 anos com cérebro de um bebê em rápido desenvolvimento, vivida por Stone, quando despojadas, são simplesmente isso: interações lúdicas entre um adulto e um bebê. A narrativa de "apaixonar-se" é uma construção, imposta pelo olhar adulto, uma exageradamente hilariante das pressões sociais para se emparelhar, encontrar "o único", mesmo que esse "único" esteja de fralda. A genialidade da piada está em seu desconforto. Ela nos faz nos contorcer, nos força a reconhecer os tons inquietantes de nossas próprias percepções. Mas também nos liberta através do riso, permitindo que liberemos a tensão, para ver o absurdo pelo que ele é.

Esta tendência da "noiva bebê" é mais do que apenas um fio cômico sombrio. É um microcosmo da exploração mais ampla do filme da hiperrealidade, onde as linhas entre verdade e ficção, sanidade e absurdo, se misturam em um caleidoscópio grotesco, mas estranhamente cativante. É um lembrete de que o riso pode ser uma ferramenta poderosa para desmantelar nossos próprios preconceitos, para confrontar as verdades desconfortáveis que se escondem sob a superfície das normas sociais.

Poor Things alerta o seguinte: da próxima vez que você se pegar rindo da absurdidade de um homem adulto declarando seu amor por uma bebê, lembre-se: a piada é nossa. É uma risada com um toque de inquietação, uma descida hilariante para o lado sombrio de nossas próprias percepções. E nessa risada desconfortável, talvez possamos encontrar as sementes da subversão, uma chance de desafiar as narrativas que nos prendem e abraçar a beleza real, bagunçada e hilariante.


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Enquanto os críticos têm lutado para definir os elementos mais extravagantes do filme (o Chicago Sun-Times o chamou de "belamente espalhafatoso... sem reservas obsceno", enquanto a Empire preferiu o termo um tanto menos prosaico "absolutamente insano, totalmente sujo"), Stone diz simplesmente que é uma história sobre uma mulher "que não precisa lidar com a vergonha".

Poor Things é baseado no romance de Alasdair Gray, e descrito no Good Reads como uma das suas criações mais brilhantes; uma revisão pós-moderna de Frankenstein, substituindo o monstro tradicional por Bella Baxter - uma bela jovem erotomaníaca ressuscitada com o cérebro de um bebê. A ambição científica de Godwin Baxter em criar a companheira perfeita é realizada ao encontrar o corpo afogado de Bella [...]

Além dos filmes mencionados anteriormente, a tendência "Born Sexy Yesterday" abrange títulos como: "Splash" (1984) dirigido por Ron Howard, que apresenta uma sereia, interpretada por Daryl Hannah, que possui conhecimento limitado do mundo humano, apesar de sua aparência adulta; "Encantada" (2007) um filme da Disney que mistura animação e live-action, onde a personagem Giselle, interpretada por Amy Adams, é uma princesa de desenho animado que é transportada à Nova York, onde demonstra extrema ingenuidade apesar de sua aparência adulta; 

"The Fifth Element (1997): Além de Leeloo, como mencionado, outras personagens, como Diva Plavalaguna, também incorporam elementos do trope. "A.I. Inteligencia Artificial (2001) dirigido por Steven Spielberg apresenta um androide, interpretado por Haley Joel Osment, que é altamente avançado tecnicamente, mas possui uma mentalidade infantil; "Quero Ser Grande" (1988): Embora não envolva ficção científica, o filme estrelado por Tom Hanks aborda a inversão dessa tendencia, com um menino que tem seu desejo de se tornar adulto realizado, mas ainda mantém sua mentalidade infantil; o mesmo acontece em "De Repente 30" (2004) onde a personagem Jenna Rink, de 13 anos, acorda aos 30 anos de idade. Jennifer Garner é quem interpreta brilhantemente a menina presa num corpo adulto. 

Em "Her" (2013) Spike Jonze aborda a relação entre um homem e um sistema operacional com uma personalidade artificialmente inteligente que, apesar de sua inteligência, está em um estágio inicial de compreensão emocional. "Chappie" (2015) de Neill Blomkamp, apresenta um robô com inteligência artificial que rapidamente aprende e se desenvolve, mas exibe traços de ingenuidade. O mesmo ocorre em "Ex Machina" (2014) que embora não se encaixe perfeitamente no trope, o filme aborda a relação entre um homem e uma inteligência artificial com uma aparência feminina, explorando temas de amadurecimento.






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